Quem coleciona selos para o filho do amigo; 
quem acorda de madrugada e estremece no desgosto de si mesmo ao lembrar que há muitos anos feriu a quem amava; 
quem chora no cinema ao ver o reencontro de pai e filho; 
quem segura sem temor uma lagartixa e lhe faz com os dedos uma carícia; 
quem se detém no caminho para ver melhor a flor silvestre; 
quem se ri das próprias rugas; quem decide aplicar-se ao estudo de uma língua morta depois de um fracasso sentimental; 
quem procura na cidade os traços da cidade que passou; 
quem se deixa tocar pelo símbolo da porta fechada; quem costura roupa para os lázaros; 
quem envia bonecas às filhas dos lázaros; 
quem diz a uma visita pouco familiar: Meu pai só gostava desta cadeira; 
quem manda livros aos presidiários; 
quem se comove ao ver passar de cabeça branca aquele ou aquela, mestre ou mestra, que foi a fera do colégio; 
quem escolhe na venda verdura fresca para o canário; 
quem se lembra todos os dias do amigo morto;
quem jamais negligencia os ritos da amizade; 
quem guarda, se lhe deram de presente, o isqueiro que não mais funciona; 
quem, não tendo o hábito de beber, liga o telefone internacional no segundo uísque a fim de conversar com amigo ou amiga; 
quem coleciona pedras, garrafas e galhos ressequidos; 
quem passa mais de dez minutos a fazer mágicas para as crianças; 
quem sabe construir uma boa fogueira; 
quem entra em delicado transe diante dos velhos troncos, dos musgos e dos liquens; 
quem procura decifrar no desenho da madeira o hieróglifo da existência; 
quem não se acanha de achar o pôr-do-sol uma perfeição; 
quem se desata em sorriso à visão de uma cascata ; 
quem leva a sério os transatlânticos que passam; 
quem visita sozinho os lugares onde já foi feliz ou infeliz; 
quem de repente liberta os pássaros do viveiro; 
quem sente pena da pessoa amada e não sabe explicar o motivo; 
quem julga adivinhar o pensamento do cavalo; 
todos eles são presidiários da ternura e andarão por toda a parte acorrentados, atados aos pequenos amores da armadilha terrestre.
(Paulo Mendes Campos, O anjo bêbado, Sabiá, Rio de Janeiro, 1969, p. 105)
Vampiro
Há 5 dias

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